quinta-feira, 7 de março de 2013

The House I Live In


It's not a war on drugs, it's a war on personal freedom, that's what it is ok? Keep that in mind at all times.  Thank you.


Bill Hicks







"The House I Live In" é um documentário de 2012 sobre a "guerra às drogas", termo tornado popular nos Estados Unidos nos anos 70. 
A primeira vez que ouvi falar sobre este documentário foi numa entrevista com Eugene Jarecki, o realizador, no "Daily Show" (curiosamente é referido o nome de Portugal no segundo vídeo): 









     
      





Factos apresentados: Desde 1971 esta guerra custou mais de 1 trilião de dólares e resultou em mais de 45 milhões de detenções. Os E.U.A. são o país com a taxa mais elevada de população encarcerada. Durante todos estes anos, o uso ilegal de narcóticos permaneceu inalterável.

A certa altura Charles Bowden (um jornalista de investigação) diz algo que acaba por ser a alavanca para este documentário: You have to understand that the war on drugs has never been about drugs. 
É tão simples quanto isso. 

Os Estados Unidos representam cerca de 5% da população mundial e no entanto têm 25% dos prisioneiros do mundo inteiro. Mais de 500.000 estão presos por crimes não violentos relacionados com consumo e tráfico de droga. Tráfico esse para sustentar o próprio vício pessoal, não se tratam de grandes traficantes de droga movidos por enormes interesses monetários.

O que começou nos anos 50/60 como um combate à contracultura consumidora de drogas (e que era transversal a várias raças), nos anos 80 começou a desenhar-se como um combate à comunidade negra norte-americana. As leis antidroga serviam o propósito maior de castigar os consumidores e não de prevenir o consumo.

Há uma parte no documentário que veio responder a várias dúvidas que eu própria tinha em relação à responsabilidade pessoal destas pessoas que são apanhadas nas teias do consumo e tráfico de droga. Ser desta ou daquela raça não pode ser justificação, em si, para isso. Todas as pessoas de uma minoria étnica que tiveram sucesso na vida e contrariaram essa condição demonstram isso. 
O que eu percebi é que é um jogo, à partida, viciado. 
Quando se deu a grande migração dos negros do Sul para o Norte dos Estados Unidos na procura de melhores condições de vida, as leis em vigor determinavam que só poderiam viver em certas zonas. A compra de propriedades estava-lhes vedada e se nos anos 50 ainda havia emprego, nos anos 60 começou a escassear devido ao êxodo das indústrias para outras partes das cidades. Estas pessoas começaram a viver de uma economia própria centrada na droga.  
Ainda nos dias de hoje, a grande maioria destas pessoas não tem qualquer tipo de hipótese de fugir a esta vida quando não há oportunidades no lugar onde nasceram e são criadas, quando as crianças para chegarem à escola têm de se deparar com traficantes, com crime, com todo o tipo de circunstâncias a que não deveriam ser submetidas, quando na escola a maioria dos professores não estão para se preocupar, quando em casa são "criadas" na maioria das vezes por pais ausentes (ou somente por um deles). Estas crianças crescem sem terem a possibilidade de irem muito longe. Vender droga parece ser o único caminho na esmagadora maioria das vezes e imaginem o que será viver num sítio em que o maior herói é o traficante de droga... Junte-se a isso a vida (que parece tudo menos isso) de alguém que sai da prisão nos Estados Unidos: não há praticamente empregos para quem já esteve preso, não há possibilidade de pedir bolsas para estudar, não lhe é permitido viver em certos lugares, não é elegível para várias ajudas a nível de saúde, familiares que vivam em casas de bairros sociais não os podem alojar porque estão proibidos de o fazer. É um ciclo vicioso.

Outra parte muito elucidativa é quando Richard Miller (historiador) faz uma retrospectiva histórica sobre a proibição de vários tipos de droga nos Estados Unidos e salienta que as leis antidroga tiveram sempre na sua génese a raça. 
Em 1800 as drogas não eram ilegais, eram socialmente aceites. O ópio, usado tradicionalmente na comunidade imigrante chinesa, foi proibido na Califórnia mas não noutras partes do país. A razão disso prende-se com o facto de na altura os chineses se concentrarem precisamente na Califórnia onde trabalhavam e estavam a retirar empregos aos americanos. O mesmo se passou com a cocaína no Sul, associada aos negros que mais uma vez ameaçavam os empregos dos americanos por trabalharem mais e ganharem menos. Outro caso: a marijuana, associada aos mexicanos. 
Esta era uma das formas de se poder exercer algum controlo racial de forma a equilibrar a economia.    

A "guerra às drogas" surgiu como uma forma de Nixon ganhar as eleições nos anos 70 e apesar de inicialmente ele até se ter tentado focar no tratamento em detrimento da punição, a agenda política acabou por obrigá-lo a voltar-se para a luta contra o crime e toda a propaganda que veio atrás. 
Um dos intervenientes no documentário, um guarda prisional, tem pontos de vista que fazem bastante sentido. Um deles é quando diz que historicamente são os políticos com o discurso habitual severo contra o flagelo da droga que são eleitos e usam estas pessoas (mais uma vez é de sublinhar que não se tratam de criminosos violentos ou de traficantes poderosos) como exemplo. Pessoas apanhadas com pequenas quantidades de droga que muitas vezes têm de enfrentar penas completamente desproporcionais ao crime cometido! Penas iguais às aplicadas a quem comete o crime de homicídio muitas vezes, pena de prisão perpétua nalguns casos até...

Algo completamente surreal acontece por exemplo no que toca à cocaína. Até há pouco tempo, o consumo de crack (cocaína que se fuma e associada desde o seu surgimento à comunidade afro-americana) era punido mais severamente que cocaína em pó (quando a única diferença é que no crack é adicionada água, bicarbonato de sódio e é aquecido...). É dado o exemplo de alguém que é julgado por posse de 5 gr. de crack e alguém com 500 gr. de cocaína em pó. As duas pessoas serão tratadas judicialmente da mesma forma... Não faz qualquer sentido! 
Actualmente deixou de haver essa proporção de 1:100 e passou a ser 1:18.
Continua a não fazer qualquer sentido. A haver punição deveria ser em igual proporção, é a mesma droga!... E os juízes mesmo que não concordem, são obrigados a sentenciar um número mínimo de anos na prisão (que muitas vezes é bastante elevado) - mandatory minimums.

Do outro lado, esta guerra também prejudica os polícias. Os que trabalham directamente com os crimes relacionados com narcóticos ganham dinheiro por cada detenção. Ou seja, acabam por ganhar mais pelas detenções do que propriamente em salário o que faz com que haja o estímulo para deter mais e mais pessoas. Já um detective não tem esse tipo de incentivo, ganha menos e em termos estatísticos mostra menos trabalho porque eventualmente resolverá um crime por mês (a título de exemplo). Não se resolvem mais crimes desta natureza porque a atenção vai toda para os crimes relacionados com a droga, esses é que geram dinheiro e distinção. A própria polícia deixa de ter fé no trabalho que é feito... 

Entretanto nos últimos anos algo curioso aconteceu. Com o consumo cada vez maior de metanfetamina (meth), a atenção voltou-se para esta droga que é associada a brancos, de classe média, não violentos que muitas vezes estão no desemprego e viram-se para o tráfico para ganhar algum dinheiro. Esta franja da sociedade americana passou a enfrentar o mesmo tipo de discriminação que muitos antes deles sofreram. 
A grande ironia da economia é não se importar com a raça. Se a pessoa não serve de nada economicamente falando, não interessa de que cor é, torna-se dispensável e empata menos estando confinada a uma prisão. É como disse alguém: it's a war on all americans.
David Simon que é um jornalista, produtor, autor e criador de uma das melhores séries de sempre, "The Wire" (que se foca no tráfico de droga em Baltimore), diz algo como: The drug war is a holocaust in slow motion. Pode chocar o paralelismo mas se virem o documentário vão perceber...

O negócio das prisões privadas na América gera bastante lucro e emprego nas comunidades onde se fixa. É uma guerra lucrativa portanto, a das drogas.
Não é o meu objectivo, de forma alguma, denegrir a imagem dos Estados Unidos mas está mais que visto (não só no que toca a esta questão) que é uma sociedade altamente capitalista em que o lucro, o capital estão no cerne de tudo (e não, não sou comunista e não me identifico com nenhum partido), em que os lobbies é que têm o verdadeiro poder de decisão... E é um país com capacidades para ser tão mais que isso, um país com uma origem inspiradora que poderia honrar de outra forma a sua própria história.

O que ficou comigo deste documentário e é difícil de engolir (não só nos E.U.A., como é óbvio) é como as pessoas são meros peões num jogo e destroem-se vidas com uma enorme facilidade com a desculpa que se está a combater um mal (a droga) quando o que está por trás é algo muito maior e mais vasto. Não será mais humano e eficaz focarem-se no que leva ao consumo de droga e partir daí sem penalizarem (ainda) mais as pessoas? Pois, isso já seria demasiado útopico...