É a maneira como ela vive em mim quando estamos dentro
do carro e me diz que eu só ouço porcaria, com aquele sorriso que faz troça de
mim. Quando são seis horas da manhã e já não é de noite mas também ainda não é
de dia e não existe mais ninguém para além de nós. Existe ela, existo eu,
dentro de um Corsa, perdidos no meio de nenhures e ela fecha os olhos, canta a
minha música. Sorri de novo, desta vez sem qualquer traço de gozo e deixa-se
sentir. Deixa-me adorá-la naquele espaço entre nós. O espaço que vai do meu silêncio até à boca
dela que continua a cantar, agora mais baixo, quase a sussurrar. Ela parte-me o
coração e nem se dá conta. Olho para ela e é cada vez maior o espaço que ocupa
em mim. O sentimento expande-se e eu não vejo outra forma de reagir senão
encolher-me para dentro. Deixou de cantar e, com os olhos ainda fechados,
toca-me ao de leve no braço e sorri novamente.
Dentro de mim há um amor que se renova sempre que ela está. Sempre que está presente, sempre
que está ausente. É um amor que vive por si e em si próprio, que encontrou em
mim algo a que se agarrar e me dá vida a cada segundo. Sei que ela não o leva a
sério porque é demasiado, é incompreensível. Sei que tenta perceber, quando me
põe as mãos na cara e olha para mim sem desviar o olhar, com uma determinação
que me diz tudo o que é preciso saber. Quando encosta a testa dela na minha e nunca
tira os olhos dos meus. Eu consigo sentir a vida que ela me pulsa quando me
toca, quando não tira as mãos da minha cara. Ela transforma algo no mundo de
forma indelével e ninguém se dá conta, só eu.
Quero dizer-lhe que sinto em mim todas as emoções
quando a tenho. Que elas se apoderam de mim de formas que me ultrapassam, de
formas que me assustam, formas que me dão cabo do estômago, do sistema nervoso,
de tudo. Ela remexe-me e isso inquieta-me e conforta-me. Isso dá e tira-me
vida. Existe tudo no espaço entre mim e ela, não existe nada no espaço entre
mim e ela.
Agora volta a cantar mas sem música. Já não está a
olhar para mim, está a olhar em frente e o Sol entretanto já nasceu. Ela canta
e isso dói-me . Ela existe e está ao meu lado e isso pesa-me. Ela nem se dá
conta que agora sim, agora percebo de forma clara e inequívoca a mortalidade. Percebo
que tudo à volta é passageiro. Sinto-me sem equilíbrio e ela continua sempre a
cantar. Sinto o impulso de pedir que se cale porque ela dói-me em toda a parte
e quero que se cale, que cale o que me força a sentir. Sinto-me fora de mim sem
ter qualquer forma de o contrariar. Eu estou nela e é o melhor e o pior
sentimento. Leva-me onde entender, quer eu queira ou não. Ela está ali mas eu
não.
Que bonito, Rita!
ResponderEliminarMuito obrigada Sara :)
EliminarWow! F*da-se, incrível...
ResponderEliminarO que posso dizer é que eu já vivi uma série destes momentos que aqui descreveste, já tive essa sorte; e que ao lê-los desta forma tão intensa, tão exponencial, sinto que a minha vida foi, afinal, melhor do que eu às vezes a tomo.
Apercebi-me também que quem quer que tenha sido o alter-ego que escreveu este texto, vive e sente ao meu ritmo (intenso e exponencial) e que não deve ser nada fácil lidar com alguém assim.
Parabéns, adorei.
:)) mto obrigada!
EliminarÉ bem verdade o que dizes, muitas vezes nem nos damos conta de certas experiências que a vida já nos deu e o quanto isso nos fez felizes...
(Sobre a possibilidade de um alter-ego: "He IS the one who writes!" Possivelmente tem alguma biblioteca secreta onde escreve best-sellers com 99% de qualidade :P )